Em uma de suas muitas letras brilhantes, em Caça à Raposa, o poeta Aldir Blanc, melhor parceiro de João Bosco, lembra no refrão a sina dos eternos recomeços da vida humana e seus ciclos – e verseja: “Ah, recomeçar, recomeçar, como canções e epidemias; ah, recomeçar, como as colheitas, com a lua e a covardia; ah recomeçar como a paixão, e o fogo, o fogo.”.

Em uma canção que fala de amor, violência, vida e morte, recomeço, a palavra epidemia não está ali por acaso (e nem nos deixará jamais esquecer da estranha ironia desta doença que roubou o gênio de Aldir). É que, assim como as guerras, as epidemias compõe o imaginário da passagem humana pela Terra – a peste negra, a febre espanhola, a poliomielite são apenas alguns exemplos, mas muitas mais existiram. Nos últimos dois anos, vivemos a angústia de nossos ancestrais, a morte rondando na soleira da porta, o terror da absoluta incerteza e da perda de sentido, a tomada de consciência de que nossa vida não é apenas breve, mas muitas vezes mal vivida.

No mundo das empresas, os departamentos de RH estão em pânico com  um fenômeno global que se alastrou na esteira da pandemia. The Great Resignation ou The Big Quit são os nomes dados a uma onda de demissões voluntárias de executivos de médio e alto escalão, que quiseram arriscar a sorte de viver com mais propósito depois do baque existencial que sofreram.

É que as epidemias não se encerram no último caso diagnosticado. Elas permanecem na memória, instalam-se nas camadas do inconsciente, viram traumas, sombras coletivas e assim permanecem produzindo efeitos ao longo do tempo, até que nos distanciemos o suficiente para que restem depuradas em  histórias. E isso está longe de ocorrer. Vivemos hoje o tempo de purgar a dor vivida, as saudades, a revolta, o desamparo.

Ao ler tudo isso, talvez você tenha se lembrado dos idosos, dos adultos, de si mesmo. É legítimo. Mas é urgente pensar nas crianças e jovens, que não têm sequer a experiência de vida suficiente para ajudá-las a transitar pelo mundo doente, e elaborar psiquicamente tamanha violência.

Além de sofrer igualmente a perda dos seus, o desemprego dos familiares, nossas novas gerações foram submetidas a uma inédita experiência de solidão, em uma fase em que o grupo é tudo. Mais: conviveram dia a dia com as questões do mundo adulto, os conflitos domésticos, sem ter como saudavelmente escapar para a rua, rir com a turma ou chorar no ombro dos amigos. Lembro da história de um aluno que participava das lives de sua escola dentro de um armário, enquanto os pais brigavam do lado de fora. 

Mundo afora, muitos estudos vêm tentando medir o tamanho desse impacto sobre crianças e jovens – até porque já se sabe que às pandemias sobrevêm as doenças que afetam a saúde mental. Mas, na vida real, ele já explode nas escolas. Surtos de ansiedade, depressão e outros distúrbios chamam a atenção. Entre os efeitos mais globais, está a crescente violência no espaço escolar. Em São Paulo, a Secretaria de Educação registrou um aumento de 48% no número de casos de agressões e ameaças em escolas. 

O que fazer? Não há receitas prontas. Mas já se sabe o que não fazer: não dá para apenas esperar a onda passar, como se fosse apenas uma crise “normal” que acabará por si mesma. Já sabemos que é saudável criar espaços para que os alunos se coloquem, ampliar o tempo de escuta e atenção, estimular as práticas esportivas, entender que os conflitos existem e devem ser o ponto de partida para mais interação humana – e não mais violência e isolamento.

Ao mesmo tempo, é uma imensa oportunidade para que os educadores se lembrem do poder do santo remédio das palavras. Como nos versos de Aldir Blanc, urge entender e ensinar que é preciso recomeçar, sempre recomeçar, e que as canções (e as narrativas, as  histórias, a poesia, o diálogo) devem estar presentes. Que é preciso ceifar a violência das palavras, mediadoras de relações, para que sejam verbos de cuidado, carinho, acolhimento, compreensão. Que é preciso falar de amor, esperança, sem esquecer que existem, existiram e existirão epidemias. Que a natureza, enfim, recomeça sempre e sempre, como escreveu o poeta, nas colheitas, na lua, no calor do fogo e na coragem da luta. Da diária, honesta e humana luta, parte inseparável do desejo de existir.