Se considerarmos que a alfabetização é um processo que acontece a vida toda, a resposta é sim. Se acontece a vida toda, acontecerá também na pandemia, também a distância, em toda e qualquer circunstância…

Mas quando se trata da alfabetização inicial, que é a esta que eu me refiro aqui, isto é, quando se trata da conquista da escrita alfabética, pela compreensão da correspondência fonema-grafema, não necessariamente será possível como resultado de uma ação pedagógica a distância.

Sim, porque para trilhar o árduo caminho de reflexão que levará à conquista da escrita alfabética, para compreender as regras de geração do nosso sistema de escrita, a criança precisará exercitar, continuamente, estes procedimentos:

– Refletir sobre a relação oral-escrito em situações reais de leitura e escrita de textos.

-Desenvolver atenção às características da escrita quando alguém mostra onde está escrito o que se lê.

– Analisar as características do próprio nome e dos nomes de pessoas conhecidas.

– Utilizar, nas atividades de “ler para aprender a ler”, não só a decifração, mas também estratégias de antecipação, inferência, seleção e verificação.

– Ajustar o que sabe que está escrito com a própria escrita (em textos poéticos conhecidos de cor ou outros que permitam esse tipo de ajuste).

– Utilizar todo o conhecimento e os recursos disponíveis para fazer suposições sobre o que pode estar escrito e encontrar palavras em textos poéticos conhecidos e em listas verdadeiras – de coisas familiares, de respostas a atividades lúdicas e outros tipos de listas que fizerem sentido.

– Utilizar todo o conhecimento e os recursos disponíveis para escrever da forma que conseguir, sempre da melhor forma possível.

– Desenvolver atenção para o valor sonoro convencional das letras em situações reais de leitura e escrita de textos (e não em atividades descontextualizadas, e sem nenhum sentido, de treino de sons isoladamente, como recomendam certos métodos de ‘boquinhas’).

– Escolher quantas e quais letras utilizar para escrever.

– Interpretar a própria escrita, justificando as escolhas feitas: por que sobram ou faltam letras, por que elas parecem estar fora de ordem, por que parece estar escrito errado conforme seu próprio critério etc.

– Analisar coletivamente diferentes formas de escrever palavras significativas (o que se faz geralmente na sala de aula, a partir da comparação de diferentes formas de escrita produzidas por várias crianças).

– Refletir sobre escolhas diferentes feitas pelos parceiros em situações de trabalho por interação (em duplas ou pequenos grupos).

– Produzir escritas em parceria quando a tarefa é escrever junto e cada um deve colocar uma letra por vez, aprendendo a argumentar sobre as próprias ideias, ouvir as justificativas do colega e rever as escolhas, quando for o caso.

– Tomar decisões diante dos desafios colocados por essas situações, confiando na própria capacidade de fazer escolhas e arriscar respostas.

Como garantir isso tudo a distância? É impossível? Não, impossível não é. Mas depende de muitas circunstâncias.

Citarei apenas três, que considero principais:

1. Acima de tudo, e em primeiro lugar, a professora precisará saber (saber mesmo, ter plena convicção) que são esses, acima, os procedimentos de reflexão sobre a escrita que uma criança tem que exercitar nas atividades cujo objetivo seja a conquista da escrita alfabética. Se a professora não tiver, garantidas previamente, as oportunidades de saber que é este o caminho principal, será difícil…

2. As crianças precisarão ter familiaridade com esses procedimentos, a partir das experiências que já tiveram na escola, de modo que a professora possa dizer: “Agora vamos fazer como já fizemos naquele dia, quando …. Lembram?”.

3. Os familiares, se forem convidados a ajudar as crianças, fazendo as vezes do professor mesmo sem serem, para garantir ajudas que de fato ajudem, precisarão ser orientados, porque cada um olha para as coisas da escola a partir da própria experiência escolar que teve. E a experiência da quase totalidade dos familiares nada tem a ver com ajudar as crianças a desenvolver os procedimentos listados acima. A maioria das pessoas (familiares, professoras e todas as demais) acham que é juntando letras e sílabas e treinando sons que se aprender a ler e a escrever…

Então é isso…