Altino José Martins Filho - 24 de Março de 2020
Minha imersão na vida cotidiana, por um ano, em um grupo de professoras em uma instituição pública municipal, gerou uma aproximação íntima com a organização educacional e pedagógica, procurei nesse percurso, compreender o sentido e significado do trabalho que moldava a vida de crianças e professoras, para construir um retrato visível do complexo de complexidade que reveste o exercício da docência em sua cotidianidade.
Elaborei quadros de uma paisagem reflexiva que ganha contornos diversos e plurais no seu conjunto de rotinas, acontecimentos esporádicos e formas de viver a vida coletiva em um ambiente educacional. O olhar lançado para “dentro” do contexto institucional no intuito de desvendar a dinâmica das diferentes minúcias da vida cotidiana, procurou conhecer a organização e estruturação dos espaços, tempos, atividades e materialidades fornecendo dados da natureza da docência na Educação Infantil, seja do grupo de professoras pesquisadas, ou em especial, descrevendo o fazer-fazendo, os fundamentos teóricos e metodológicos da docência da Professora Patrícia.
A busca em compreender as minúcias no fazer-fazendo da docência, significa considerar a vida cotidiana como um grande quebra-cabeça, recheado e aberto a muitos imprevistos. O quebra-cabeça é um jogo de muitas peças que forma uma imagem, cena ou paisagem, também pode indicar um enigma ou um desafio difícil de resolver, quase como um movimento de caleidoscópio, assim, compreendo a vida em seu percurso diário, a vida em sua imprevisibilidade. Porém, quando a vida cotidiana é olhada por dentro, em um exercício de ver depois de olhar, encontramos possibilidades múltiplas de tornar visíveis os processos de resistência, autoria, criação e transgressão.
Somos herdeiros de uma educação escolar castradora do prazer, da liberdade e da autonomia. Vivemos um processo de escolarização sabotador das infâncias e encapsulador da vida em suas minúcias cotidianas. Sabemos que não podemos deletar a forma escolar que hegemonicamente vem se apresentando no cotidiano das creches e pré-escolas, porém podemos reescrevê-la, reinventá-la e vencer os vícios que suicidam o surpreendente, o inédito, o insólito e o extraordinário.
Quem está presente no cotidiano das instituições educativas ou conhece as relações que lá são estabelecidas, pode concordar que na urgência do instantâneo, vemos se perder a capacidade de reflexão sobre os afazeres das rotinas, colocando-as em momentos rotineiros. Acontecimentos rotineiros onde tudo se dá de forma igualzinha, dia após dia. Uma mesmice desmedida!
As diferentes minúcias, escolhida como uma metáfora para olhar a vida cotidiana no fazer-fazendo da docência, revela em minhas análises, a necessidade de reconstruirmos o cuidado e a educação como uma forma de cuidar da vida em sua inteireza. Ou seja, brota o desafio de criarmos uma cultura de comunidade comum, em que crianças e professoras são parte integrantes da mesma. Sendo as professoras, o centro da organização e da intencionalidade na esfera da multiplicidade de dimensões do ato de educar e cuidar.
Já as crianças, quando consideradas como sujeitos sociais de direitos, que possuem humanidades e agência, são reconhecidas em sua busca constante em querer participar, exercer seu protagonismo e atuarem como atores ativos com potência de agir. Viés que quando aprofundados se consubstanciam e unificam a existência de um currículo narrativo emergente, principalmente no que se refere a vida diária em um cotidiano que pretende construir a democracia, o respeito mútuo e a vida colaborativa. Elementos estruturantes da construção de uma comunidade democrática, afirmando uma concepção de democracia viva.
O que está subjacente quando trago para a cena as minúcias no fazer-fazendo da docência são pensamentos sobre a necessidade da promoção, do reconhecimento e da valorização social da própria vida cotidiana. Não posso deixar de referir que um dos aspectos mais significativo é a afirmação que as professoras não são salvadoras da pátria, mas muitas formas de testemunhar o valor da vida no fazer-fazendo da docência está em suas mãos e no próprio percurso da vida cotidiana. Vida de todos os dias que não é vivida linearmente e nem despojada de complexidade e densidade que atravessam todas as relações e interações dos sujeitos que dela participam diariamente.
As creches e pré-escolas consideradas como microssociedades, precisam afirmar que nelas coexistem dissonâncias e relações de poder: desde a projeção da liberdade e da autonomia até a dominação pela subordinação e submissão. Dimensões em diferentes extremos ideológicos, mas que convergem para uma mesma direção, o processo de formação humana, mesmo que não concordamos com um desses vieses.
Analisando as diferentes minúcias da vida cotidiana no fazer-fazendo da docência, posso ressaltar que refletir mais e fazer menos, na direção de romper com a corrida desenfreada das rotinas rotineiras nos contextos de Educação Infantil, parece ser um consenso entre nós.
Olhar com olhos de querer ver os modos e maneiras que organizamos o dia a dia da vida, nos leva a concordar que no dia a dia, nada é banal, nada é tão óbvio como nos parece ser. Nada precisa ser tão rotineiro, como temos visto, pois tudo depende do valor que se dá a cada momento da relação com a crianças e com o fazer-fazendo da docência.
Sabemos o que isso pode significar? Em meus estudos uma diferença crucial a ser melhor compreendida. Um ambiente escolar desinteressante acaba transformando a vida sem sentido para as crianças e para os próprios profissionais. Muitos ambientes escolares estão fadados a processos bancários e burocráticos de aprender e ensinar. Estranho mundo escolar que nos acostumamos a habitar como se fosse normal.
O livro que pretende trazer reflexões sobre as diferentes minúcias da vida cotidiana no fazer-fazendo da docência, se apresenta como uma possibilidade, uma possibilidade incubadora de uma nova geração de professoras e professores no viver e construir a profissão no contexto da Educação Infantil.
Termino com João Guimarães Rosa, Grandes Sertões: Veredas, meu poeta inspirador e literário favorito para escrever sobre as minúcias da vida cotidiana no fazer-fazendo da docência. Reflexão certeira do autor, quando afirma: Quem elegeu a busca não pode recusar a travessia! Que nossa busca em ser professor e professora de Educação Infantil, nos leve a perceber a vida em sua travessia cotidiana, nos perguntando: qual é a vida que vale a ser vivida neste ambiente educacional?
Referências
MARTINS FILHO, Altino José. Minúcias da vida cotidiana no fazer-fazendo da docência na educação infantil. Florianópolis: Editora Insular, 2020.
MARTINS FILHO, Altino José. Minúcias da vida cotidiana no fazer-fazendo da docência na educação infantil. 2013. 305 f. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Faculdade de Educação. Programa de Pós-Graduação em Educação, Porto Alegre, RS, 2013.
MARTINS FILHO, A. J.; PRADO, P. (Org.) Das pesquisas com crianças à complexidade da infância. São Paulo: Autores Associados, 2011.
MARTINS FILHO, Altino José; DELGADO, Ana Cristina Coll (Orgs.). Dossiê: Bebês e Crianças Bem Pequenas em Contexto Coletivo de Educação. Revista Pro-Posições. Faculdade de Educação. UNICAMP. Campinas, SP, V.24, N.3 (72), set,/dez. 2013. Acesso: http://www.scielo.br/pdf/pp/v24n3/02
MARTINS FILHO, Altino José; SALAZAR, Joselma de Castro (Orgs.). Dossiê: Avaliação de Contexto na e da Educação Infantil – diálogos entre Brasil e Itália Pro-Posições. Faculdade de Educação. UNICAMP. Campinas, SP, V.29, N.2 (87), maio,/ago. 2018. Acesso: http://www.scielo.br/pdf/pp/v24n3/02
MARTINS FILHO, Altino José (Org.) Criança pede respeito: ação educativa na creche e na pré-escola. Porto Alegre: Mediação, 2015.
MARTINS FILHO, Altino José et al. Infância plural: crianças do nosso tempo. Porto Alegre: Mediação, 2006.
MARTINS FILHO, Altino José e DORNELLES, Leni Vieira. Lugar da Criança na Escola e na Família: a participação e o protagonismo infantil. Porto Alegre: Mediação, 2018.
MARTINS FILHO, Altino José; MARTINS FILHO, Lourival José. Educação Infantil: especificidade da docência. Editora da UDESC, Florianópolis, SC, 2013.
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