O filósofo checo-brasileiro Vilém Flusser em Filosofia da caixa preta (Ed. Annablume, 2011) debate sobre a imagem como mediadora entre ser humano e mundo. Em determinado trecho diz que “a fotografia nunca vai ser uma profissão”, isso porque o “aparelho fotográfico é um brinquedo” com competências e qualidades para traduzir o pensamento conceitual em fotografia.

O que quer dizer com isso? Como a câmera fotográfica é um brinquedo? Diferentemente de outros instrumentos que o ser humano manipula no seu trabalho árduo, cotidiano e repetitivo, a câmera permite a experimentação, a transgressão, o jogo, a arte. E que o resultado depende de quem a utiliza. 

A primeira associação que vem à mente ao ler a citação do autor é que existe uma ligação direta entre fotografar e brincar. Fica evidente quando saímos para o passeio fotográfico com professoras por espaços urbanos. Existem condições estéticas nesse exercício que nos levam a uma outra dimensão. Imagine educadoras, fora da sala de aula, livres do papel docente, livres do andar reto e funcional do pedestre comum, alheias ao tempo cronológico, capturando e sendo capturadas por imagens fotografáveis.

A concentração, o movimento corporal e a produção de serotonina da experiência estética são suficientes para não querer parar de fotografar: vive-se a intensidade do olhar ágil e esperto do street photographer, aquele cuja arte é registrar o cotidiano da cidade. Já vi acontecer com diversas professoras em parques, praças, mercados e feiras livres. É um tempo de brincar, de ócio criativo, de vagabundear e observar a vida imprevisível que pulsa nas ruas. E, no tempo presente, observar. Eventualmente, fotografar.

Nessas saídas, em busca de experiências fotográficas, a educadora não trabalha com a câmera, mas brinca com ela. Como em um jogo de xadrez, a professora/fotógrafa joga em um “lance” um novo ponto de observação, a fim de realizar a possibilidade oculta desse jogo feito de formas, linhas, cores, luzes e sombras: exercita a curiosidade ao máximo. E essa pessoa que manipula a câmera “não é um trabalhador, mas jogador: não um homo faber, mas homo ludens”, afirma Flusser. A câmera se comporta, efetivamente, em função da intenção lúdica e curiosa da fotógrafa, bem no sentido “ludens” do termo.

A provocação de que a câmera é um “brinquedo” possibilita estabelecer outras associações. Primeiro, que a câmera está mais do que nunca acessível a todos que querem brincar e que, não necessariamente, precisam esperar pela excelência profissional para serem fotógrafos. Vincular o ato de fotografar ao ato de brincar legitima qualquer fotógrafa, autorizada ou não, a se arriscar mais.

Segundo, que o ato fotográfico é um jogo. Por isso, sinta que no estado atento e curioso – de mirar um sujeito ou um objeto – você fotografa com o corpo todo e usa todos os sentidos e as referências culturais: rapidamente, pensa, sente, mira e se movimenta. É um jogo de agilidade e presteza. É também um jogo de memórias e experiências de uma vida toda. E, no instante decisivo, você dispara o botão da câmera para conseguir uma “boa jogada”. Nesse instante decisivo você não trabalha, age, como diz Flusser:

Fotógrafos não trabalham, agem […]. O fotógrafo produz símbolos, manipula-os e os armazena. Escritores, pintores, sempre fizeram o mesmo. O resultado deste tipo de atividade são mensagens: livros, quadros, projetos. Não servem para serem consumidos, mas para informarem: serem lidos, contemplados, analisados e levados em conta nas decisões futuras (p.35).

Nesse trecho, parece que ele sintetiza o que a documentação pedagógica verdadeira deve se propor a ser: conteúdos lúdicos a serem lidos, contemplados, analisados e levados em conta nas decisões futuras de processos de aprendizagem vivenciados, conjuntamente, entre crianças e educadoras.

No livro, o autor termina um dos capítulos com referências implícitas sobre a potencialidade da “câmera interna” que todos nós possuímos, invocando nosso olhar à participação no jogo:

O aparelho fotográfico é, por certo, objeto duro, feito de plástico ou metal. Mas não é isso que o torna brinquedo. Não é a madeira do tabuleiro e das pedras que torna o xadrez jogo. São as virtualidades [além de virtudes e trajetórias possíveis] contidas nas regras: o software (p.40).

software ao qual se refere é a “câmera interna”, nossa maneira individual e intransferível de olhar, curiosamente, para o universo. No nosso caso, para e com o universo da infância.

Vale registrar que o título do artigo partiu da percepção de uma aluna de escola pública da Grande São Paulo. Ao ver sua professora ali em cena, atenta e curiosa, fotografando as descobertas e brincadeiras das crianças no recreio, teve um insight: “Professora, a câmera é o seu brinquedo!”. Naquele momento, a menina enxergou a disposição da educadora para o jogo fotográfico, para o prazer de fotografar.